O Avatar: Concepções Digital, Cristã, Monista e de Bhakti
Chaitanya-charana Dasa
O conceito de avatar no mundo dos jogos, na teologia cristã e na filosofia monista têm um elemento em comum: na transposição de um mundo
para outro, quem o faz não permanece o mesmo – o avatar de bhakti possui uma lógica diferenciada.
Central no conceito de avatar está a ideia de transpor de um reino para outro. Em seu contexto filosófico original, em sânscrito, avatar se refere à Verdade Absoluta descer do mundo espiritual para o mundo material. A existência do Divino além deste mundo se chama “transcendência”, ao passo que Sua existência neste mundo se chama “imanência”. A questão de como o transcendente pode Se tornar imanente intrigou muitos pensadores ao longo da história. Para compreendermos um pouco da profundidade do assunto, consideremos as concepções de avatar no mundo digital, no cristianismo, no monismo e em bhakti.
Avatar Digital
A palavra sânscrita avatar se tornou bem conhecida no mundo devido a um sucesso de bilheteria de Hollywood e a jogos de RPG de computador. No uso contemporâneo, avatar se refere a um ícone ou personagem tridimensional representando uma pessoa em ambientes virtuais, como videogames e fóruns de internet. Nesse uso, a “transposição” implícita no avatar é do mundo físico para o mundo digital. Nosso avatar digital é um passo para fora da realidade de quem somos. Mesmo se nosso avatar no videogame for hábil em fazer muitas coisas, ele não tem consciência alguma. Sua consciência aparente resulta da projeção de nossa consciência nele através do mecanismo de interface do jogo. Então, quando nos referimos a algo inconsciente como nossa avatar, concebemo-nos em termos reduzidos. Essa redução é reveladora, pois aponta para duas linhas de pensamento distintas:
1. Uma concepção mecânica do eu, que nos faz pensar que podemos ser representados por um perfil digital que é tão inconsciente quanto os elétrons que constituem o mundo digital.
2. Uma ansiedade por se transpor para uma realidade diferente de nossa realidade mundana atual com toda sua nulidade.
Criação de um avatar em um jogo de computador.
Embora a palavra avatar, tradicionalmente, refira-se ao advento da Verdade Absoluta para este mundo, o uso contemporâneo da palavra se refere ao eu, e não ao Absoluto. Ainda assim, os problemas da “transposição” associados com a noção de avatar vêm à tona quando aplicados ao eu também, pois o avatar e o eu são distintos.
Encarnação Cristã
O termo “avatar” é frequentemente traduzido por “encarnação”. Essa palavra é intrincadamente associada a concepções abraâmicas acerca de como o Divino Se manifesta neste mundo. No cristianismo, a palavra “encarnação” se refere, em geral, a Jesus, que é tido como Deus em um advento de carne como um ser humano. Jesus nasceu em uma família judia que era fortemente messiânica, movida pela ansiedade de aguardar um messias que libertaria as pessoas de seus vários problemas. Com base nos ensinamentos e milagres de Jesus, seus seguidores o consideraram o messias. Essa noção foi negada por alguns diante de sua crucificação, mas foi reforçada por outros devido à alegada ressurreição. Por quase quatro séculos depois, a identidade de Jesus foi uma questão de debate vigoroso, ou mesmo “amargo”, na comunidade cristã. Por fim, o Credo Niceno elevou Jesus de “messias” a “encarnação”. O Credo determinou que a divindade de Cristo se manifestara na humanidade de Jesus, que era, por conseguinte, tanto completamente humano quanto completamente divino. Todavia, atribuir completa divindade a ele foi algo problemático, haja vista a memória histórica inegável e recente da vida de Jesus como um humano. A própria Bíblia insuflava o problema com declarações como: “O Pai é maior do que eu”. (João 14:28) Enquanto algumas citações apoiam a unidade do Pai e do Filho, a Bíblia também indica que essa “unidade” com Deus não é exclusiva dele, senão que pode ser obtida por outros também: “Para que todos sejam um, como Tu, ó Pai, o és em mim, e eu em Ti; que também eles sejam um em nós.” (João 17:21)
“E o verbo se fez carne.”
Essa falta de clareza dos limites entre humano e divino na concepção da identidade de Jesus reflete a falta de clareza ainda maior dos limites de matéria e espírito na filosofia cristã. A Bíblia se refere à alma, mas não a descreve claramente, nem a diferencia categoricamente do corpo – é frequentemente utilizada como uma referência metafórica para nossa essência imaterial. Com essa ambiguidade ontológica em relação à alma, surgiu a noção de que todo crente fiel receberia uma ressurreição corpórea, como aconteceu com Jesus. Aqui, mais uma vez, vemos como concepções do Divino se entrelaçam com concepções do eu.
Avatar Monista
Monistas defendem que a realidade é constituída, em última instância, de uma substância. Tecnicamente, materialistas que dizem que a matéria é tudo o que existe também são monistas – são monistas materialistas. Convencionalmente, porém, o termo “monista” se refere a espiritualistas que defendem que uma substância espiritual é tudo o que existe. Para tais monistas, o mundo material, com toda sua variedade, é, por fim, uma ilusão. Também sustentam que nossa autoconcepção como seres individuais também é uma ilusão. Acreditam que libertação é se fundir na unidade não-diferenciada do Absoluto.
Para os monistas, a matéria é simplesmente uma ilusão; o espírito é tudo o que existe, e é uma unidade não-diferenciada. Assim, na visão de mundo monista, não existe mundo material para se transpor, tampouco existe um ser espiritual supremo para fazer essa transposição.
Na tradição monista, o avatar é uma ilusão útil, mas que, no final, deve ser dispensada.
Monistas tentam solucionar tais problemas em sua filosofia atribuindo uma realidade provisória para a matéria – a matéria é vista como real enquanto as pessoas estão em consciência material, ou, em outras palavras, em ilusão. Defendem que o avatar também está nessa realidade provisória – o absoluto impessoal se torna pessoal temporariamente durante o período do advento. O avatar, assim, é tratado como uma ilusão útil, a qual pode nos ajudar a resistir às ilusões danosas da existência material: os muitos objetos dos sentidos que nos persuadem em direção aos prazeres mundanos. Quando focamos nossa consciência no avatar, podemos nos desapegar dos objetos dos sentidos e nos situarmos em um modo relativamente elevado: a bondade. Ainda assim, independente de quão útil ou prestativo, o avatar é tido, em última instância, como uma ilusão – uma ilusão que precisa ser dispensada para se obter a libertação. Assim, o monismo não trata o avatar como uma realidade espiritual, mas como uma ficção conveniente e útil para o crescimento espiritual.
Avatar de Bhakti
Enquanto o cristianismo sustenta que a encarnação é, de alguma forma, tanto material quanto espiritual, e o monismo advoga que o avatar é material, bhakti explica que o avatar permanece espiritual mesmo enquanto está no mundo material.
Para entendermos como isso é possível, precisamos primeiramente compreender como bhakti entende a relação entre matéria e espírito. A Bhagavad-gita, em seu segundo capítulo, apresenta uma dualidade radical entre matéria e espírito. O espírito é descrito como não tendo nenhum dos atributos da matéria – a alma não nasce nem morre (2.20) e é imutável, estando além de fragmentação, incineração, dissolução e dissecação (2.24-25). A Gita, porém, balanceia essa dualidade radical com uma unidade orgânica em seu sétimo capítulo, onde se declara que tanto a matéria quanto o espírito são energias da mesma Verdade Absoluta (7.4-5). O espírito ser uma energia do Absoluto deixa implícito que o Absoluto está situado não apenas do lado espiritual da divisão matéria e espírito, mas que está situado no ápice da realidade espiritual. A Gita (10.12) revela que essa Verdade Absoluta é Krishna, declarando que Ele não é apenas brahma (espírito), mas param brahma (o Espírito Supremo). O Srimad-Bhagavatam (8.3.4), outro texto de bhakti destacado, reitera essa posição do Absoluto ao declarar que Ele é parat parah, o que Srila Prabhupada explica como sendo que “Ele é transcendental ao transcendental”, ou “acima de toda transcendência”. Com esse plano de fundo metafísico, estamos melhor preparados para entender como o avatar permanece espiritual mesmo no mundo material.
Krishna, segundo a Bhagavad-gita, não é influenciado pela natureza material mesmo quando está nela.
Para ilustrar, Srila Prabhupada, algumas vezes, dava o exemplo da eletricidade: é uma só energia que pode se manifestar como calor através de um aquecedor e como frio através de um ar-condicionado. Pensemos ainda nos aparelhos que podem, pelo girar de um botão, passar de aquecedor para ar-condicionado. Aquele que controla esse aparelho pode, à vontade, se valer da mesma energia elétrica para aquecer ou esfriar. Se a existência é como uma máquina, Krishna é como o controlador. Girando o botão de Sua onipotência, Ele pode impedir que a energia material atue materialmente sobre Ele até mesmo quando Ele Se manifesta no mundo material.
Embora a Bhagavad-gita não utilize a palavra específica “avatar”, fala sobre o advento do divino no capítulo 4, nos versos de 6 a 10. A Gita começa essa discussão declarando que Krishna permanece o Senhor imperecível de todos os seres vivos até mesmo quando Ele entra na natureza material, que pertence a Ele. Essa declaração indica que Ele não fica sob o controle da natureza material, que sentencia todos os seres corporificados através do fluxo inexorável do tempo à deterioração e destruição.
A transcendência eterna do avatar grifa uma diferença sutil entre “avatar” e a tradução “encarnação”. Etimologicamente, “encarnação” significa “entrar na carne”. Krishna, entretanto, não faz Seu advento em uma forma de carne; Ele permanece transcendental.
Não obstante, instrutores de bhakti frequentemente introduzem audiências ao conceito de avatar com a tradução “encarnação”. Fazendo isso, evitam de colocar sobre nós o fardo de uma dupla falta de familiaridade: tanto um termo estranho quanto um conceito estranho. Termos são instrumentos verbais para conceitos mentais. Ao primeiramente nos darem um meio familiar para acessarmos um conceito estranho e, em seguida, explicarem as dimensões estranhas do conceito, eles nos ajudam a progredir até a compreensão, com um passo de cada vez.
Quando Krishna faz Seu advento neste mundo e realiza Seus passatempos, Ele faz com que este mundo deixe de ser um palco para exibição de ilusão e o torna um palco para exibição da realidade espiritual mais elevada: os passatempos amorosos entre Ele e Seus devotos. A Gita (4.9) declara que aqueles que se atraem pelo advento e pelas atividades de Krishna, entendendo Sua posição transcendental, não renascem – senão que alcançam Sua morada eterna.
Trailer e Trilha
O passatempo que o avatar realiza serve a duas funções extraordinárias: como trailer e como trilha.
Trailer: O amor é nossa aspiração mais profunda; todos nós desejamos amar e sermos amados. Contudo, devido à natureza temporária das coisas neste mundo, nossa avidez por amor é frustrada – inevitável e repetidamente.
Os passatempos de Krishna são atuações do amor que jamais é frustrado.
Os passatempos de Krishna são atuações do amor que jamais é frustrado – o amor puro e espiritual entre o todo-atrativo Supremo e Seus devotos que segue eternamente no mundo espiritual. Quando Krishna faz Seu advento neste mundo, Ele realiza alguns desses passatempos aqui, dando-nos vislumbres provocativos de uma região onde nossa avidez por amor pode ser satisfeita eterna e perfeitamente. Assim, Seus passatempos servem como um trailer com a finalidade de nos atrair para Sua morada.
Trilha: Aqueles com um entendimento superficial dos passatempos de Krishna pensam que se tratam de histórias destinadas a entreter. Quem compreende esses passatempos verdadeiramente, porém, sabe que não são mero entretenimento, mas algo em que podemos ingressar – eles ocorrem na realidade espiritual eterna, à qual nós, como almas espirituais, partes de Krishna, pertencemos.
Para adentrarmos essa realidade, precisamos redirecionar nosso coração do mundo para Krishna. Para esse redirecionamento, Seus passatempos proporcionam tópicos encantadores e purificantes, os quais podemos contemplar, analisar e desfrutar. Quanto mais pensamos em Krishna dessa maneira, mais nosso coração se atrai por Ele e mais progredimos em direção a Ele.
De modo geral, o avatar demonstra a centralidade do amor no crescimento espiritual. É o amor de Krishna por nós que inspira o transcendental a se tornar imanente, e é nosso amor por Ele que nos permite transpormos da matéria para o espírito, experimentarmos nossa identidade além da matéria e nos situarmos na realidade espiritual.
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