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Trajetória de Allan Kardec, difusor do espiritismo, chega aos cinemas
Ao recontar a crise de fé do fundador da Doutrina Espírita Kardec, o filme, busca reconciliar fé e razão
LUIZ GUSTAVO VILELA 24/05/2019 15:00
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Leonardo Medeiros é o protagonista Hypolite Leon Denizard Rivail, conhecido depois como Allan Kardec. Foto: Daniel Behr
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Nesta semana chega aos cinemas de Curitiba Kardec (2019), cinebiografia de Hippolyte Léon Denizard Rivail, que ficou mais conhecido pelo seu pseudônimo (ou, se preferir, nome de uma de suas vidas passadas) Allan Kardec. A produção narra o arco dramático que fez um homem de ciência – um educador discípulo de Pestalozzi que se recusa a trabalhar depois de o Imperador Napoleão III obrigar o ensino religioso nas escolas – se interessar pelo mundo dos espíritos a ponto de arriscar toda sua carreira. Uma crise de fé na razão iluminista, digamos.
No Brasil, país em que a Doutrina Espírita encontra particular ressonância, o nome de Allan Kardec é um dos mais conhecidos. É curioso, porém, como só agora o cinema demonstra interesse pelas histórias fundantes da filosofia (Chico Xavier, o outro nome mais diretamente associado ao Espiritismo no Brasil, ganhou uma cinebiografia em 2010 pelas mãos de Daniel Filho com Nelson Xavier no papel-título). “Quando o Marcel Souto Maior me ligou e disse que estava escrevendo uma nova biografia sobre ele e sugeriu que a gente levasse essa história para o cinema. E eu fiquei caramba! Como não pensei nisso antes, porque é boa a história”, diz Wagner de Assis, diretor de Kardec.
Considerando a trajetória de Assis, é ainda mais curioso que só agora ele tenha feito este filme. Ele é o diretor de Nosso Lar (2010), baseado nos relatos do espírito André Luiz depois da morte, e de A Menina Índigo (2016), sobre uma criança cuja mediunidade é confundida com voluntarismo. Ambos, assim como Kardec, com a temática espírita operando um papel central. O diretor, porém, refuta, em parte, o título de “diretor de filmes espíritas” e chega a questionar se “filme espírita” sequer seria um gênero próprio.
Para ele, “Nosso Lar é sobre o que acontece depois da vida, e isso não é propriedade do espiritismo, está longe de ser. A Menina Índigo é sobre novas gerações de crianças que estão mudando o mundo. E o Kardec é sobre a transformação de um homem – quase heroico, mitológico. O processo de mudança de vida pelo qual ele passou”. Assis, porém, sabe que a temática é recorrente demais para refutar uma ligação tão óbvia e logo emenda: “mas como é muito difícil fazer um filme e você vai trabalhar cinco, seis anos de sua vida, é bom que seja algo que te diga respeito.”
Assis considera a dimensão humana a questão definidora da sua obra, mais até do que a temática Espírita, mas em boa parte pelo potencial ficcional que estas tramas possuem. “Acho esse tema fantástico. Acho que tem histórias incríveis. Como contador de histórias eu me interesso pelas boas histórias. Gosto do aspecto de buscas pessoais, do questionamento pessoal, sobre quem somos, de onde viemos. E tento colocar isso no meu trabalho de alguma forma que não seja uma escolha somente pela minha crença pessoal, mas em função de uma boa história”, conta.
O que chama atenção em Kardec, para além da temática, é o valor de produção. A reconstrução de época, dos figurinos às locações, impregna a tela com um realismo que ajuda a manter a atenção do espectador ao longo da projeção. “A gente foi para Paris para pegar o máximo de realidade possível. E fomos apagando [digitalmente] as marcas de modernidade. A maioria das externas é Paris. Isso é uma felicidade muito grande”, conta o diretor.
Como é uma história de transformação pessoal, mas lida com questões da política francesa da época, a verossimilhança é muito importante para a fruição do filme, o que se reflete no cuidado com a produção. Por isso também é curiosa a opção de usar atores brasileiros falando em português. O diretor revela que para esta é “uma opção muito natural já que o filme reverbera mais no Brasil, que tem relação com nossa realidade”, dada a penetração do Espiritismo no Brasil.
Crise de fé
O tema da crise de fé não é estranho ao cinema. Martin Scorsese o usou no seu à época infame A Última Tentação de Cristo (1988), em que Jesus Cristo (Willem Dafoe), jejuando por 40 dias no deserto, contempla uma existência mundana, com mulher e filhos, ao invés do sacrifício que o aguardava no Calvário. Mais recentemente Paul Schrader lançou Fé Corrompida (2017), em que um padre (Ethan Hawke) questiona se as mudanças climáticas provocadas pelo homem, por ferirem a beleza da criação divina, não seriam inerentemente pecaminosas. Kardec, apesar de se ambientar em meados do Século XIX, reflete em parte essa mesma angústia existencial contemporânea.
Segundo o filme, Leon Rivail (Leonardo Medeiros) é convencido, não sem bastante resistência, a participar de uma sessão das então infames “mesas girantes”, um truque de salão que eram moda nos salões parisienses. As experiências com médiuns o fazem não apenas acreditar que há um mundo espiritual, como essas entidades estão dispostas a afetar a existência física. Começa sua crise de fé na razão pura, por mais contraditório que pareça. A questão é que, homem de ciência por excelência, Rivail começa a usar o método científico para questionar os fenômenos sobrenaturais, publicando os resultados no livro O Mundo dos Espíritos, já sob o nome Allan Kardec.
Historicamente fé e razão, religião e ciência, estão em campos de disputa opostos. Um não respira onde o outro existe. “Ou você acredita, porque acredita cegamente, ou você entende e isso te impede de acreditar”, diz Assis. Ele, porém, pensa que histórias como a de Kardec podem promover uma conciliação: “um dos grandes méritos do filme é essa reconstrução de uma possibilidade até então inaudita de fé e razão andarem juntas. A tal da fé raciocinada, que é um termo que ele [Rivail/Kardec] acaba criando depois, é algo que parecia inacessível para o mundo.”
Para o diretor, a forma de pensar kardecista finalmente começa a encontrar ressonância no mundo contemporâneo. “Vejo hoje a ciência clássica acompanhada de muita ciência alternativa, de muita meta ciência. Muitos profissionais que começam a sair de dentro dos laboratórios. Temos, por exemplo, uma associação de médicos espíritas enorme, investigando como aqueles conhecimentos ajudam as pessoas a serem melhor tratadas em suas enfermidades. Ao mesmo tempo vejo a razão desconstruir castelos de areia em relação à fé. E isso é sensacional”, diz.
LEIA TAMBÉM:
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No Brasil, país em que a Doutrina Espírita encontra particular ressonância, o nome de Allan Kardec é um dos mais conhecidos. É curioso, porém, como só agora o cinema demonstra interesse pelas histórias fundantes da filosofia (Chico Xavier, o outro nome mais diretamente associado ao Espiritismo no Brasil, ganhou uma cinebiografia em 2010 pelas mãos de Daniel Filho com Nelson Xavier no papel-título). “Quando o Marcel Souto Maior me ligou e disse que estava escrevendo uma nova biografia sobre ele e sugeriu que a gente levasse essa história para o cinema. E eu fiquei caramba! Como não pensei nisso antes, porque é boa a história”, diz Wagner de Assis, diretor de Kardec.
Considerando a trajetória de Assis, é ainda mais curioso que só agora ele tenha feito este filme. Ele é o diretor de Nosso Lar (2010), baseado nos relatos do espírito André Luiz depois da morte, e de A Menina Índigo (2016), sobre uma criança cuja mediunidade é confundida com voluntarismo. Ambos, assim como Kardec, com a temática espírita operando um papel central. O diretor, porém, refuta, em parte, o título de “diretor de filmes espíritas” e chega a questionar se “filme espírita” sequer seria um gênero próprio.
Para ele, “Nosso Lar é sobre o que acontece depois da vida, e isso não é propriedade do espiritismo, está longe de ser. A Menina Índigo é sobre novas gerações de crianças que estão mudando o mundo. E o Kardec é sobre a transformação de um homem – quase heroico, mitológico. O processo de mudança de vida pelo qual ele passou”. Assis, porém, sabe que a temática é recorrente demais para refutar uma ligação tão óbvia e logo emenda: “mas como é muito difícil fazer um filme e você vai trabalhar cinco, seis anos de sua vida, é bom que seja algo que te diga respeito.”
Assis considera a dimensão humana a questão definidora da sua obra, mais até do que a temática Espírita, mas em boa parte pelo potencial ficcional que estas tramas possuem. “Acho esse tema fantástico. Acho que tem histórias incríveis. Como contador de histórias eu me interesso pelas boas histórias. Gosto do aspecto de buscas pessoais, do questionamento pessoal, sobre quem somos, de onde viemos. E tento colocar isso no meu trabalho de alguma forma que não seja uma escolha somente pela minha crença pessoal, mas em função de uma boa história”, conta.
O que chama atenção em Kardec, para além da temática, é o valor de produção. A reconstrução de época, dos figurinos às locações, impregna a tela com um realismo que ajuda a manter a atenção do espectador ao longo da projeção. “A gente foi para Paris para pegar o máximo de realidade possível. E fomos apagando [digitalmente] as marcas de modernidade. A maioria das externas é Paris. Isso é uma felicidade muito grande”, conta o diretor.
Como é uma história de transformação pessoal, mas lida com questões da política francesa da época, a verossimilhança é muito importante para a fruição do filme, o que se reflete no cuidado com a produção. Por isso também é curiosa a opção de usar atores brasileiros falando em português. O diretor revela que para esta é “uma opção muito natural já que o filme reverbera mais no Brasil, que tem relação com nossa realidade”, dada a penetração do Espiritismo no Brasil.
Crise de fé
O tema da crise de fé não é estranho ao cinema. Martin Scorsese o usou no seu à época infame A Última Tentação de Cristo (1988), em que Jesus Cristo (Willem Dafoe), jejuando por 40 dias no deserto, contempla uma existência mundana, com mulher e filhos, ao invés do sacrifício que o aguardava no Calvário. Mais recentemente Paul Schrader lançou Fé Corrompida (2017), em que um padre (Ethan Hawke) questiona se as mudanças climáticas provocadas pelo homem, por ferirem a beleza da criação divina, não seriam inerentemente pecaminosas. Kardec, apesar de se ambientar em meados do Século XIX, reflete em parte essa mesma angústia existencial contemporânea.
Segundo o filme, Leon Rivail (Leonardo Medeiros) é convencido, não sem bastante resistência, a participar de uma sessão das então infames “mesas girantes”, um truque de salão que eram moda nos salões parisienses. As experiências com médiuns o fazem não apenas acreditar que há um mundo espiritual, como essas entidades estão dispostas a afetar a existência física. Começa sua crise de fé na razão pura, por mais contraditório que pareça. A questão é que, homem de ciência por excelência, Rivail começa a usar o método científico para questionar os fenômenos sobrenaturais, publicando os resultados no livro O Mundo dos Espíritos, já sob o nome Allan Kardec.
Historicamente fé e razão, religião e ciência, estão em campos de disputa opostos. Um não respira onde o outro existe. “Ou você acredita, porque acredita cegamente, ou você entende e isso te impede de acreditar”, diz Assis. Ele, porém, pensa que histórias como a de Kardec podem promover uma conciliação: “um dos grandes méritos do filme é essa reconstrução de uma possibilidade até então inaudita de fé e razão andarem juntas. A tal da fé raciocinada, que é um termo que ele [Rivail/Kardec] acaba criando depois, é algo que parecia inacessível para o mundo.”
Para o diretor, a forma de pensar kardecista finalmente começa a encontrar ressonância no mundo contemporâneo. “Vejo hoje a ciência clássica acompanhada de muita ciência alternativa, de muita meta ciência. Muitos profissionais que começam a sair de dentro dos laboratórios. Temos, por exemplo, uma associação de médicos espíritas enorme, investigando como aqueles conhecimentos ajudam as pessoas a serem melhor tratadas em suas enfermidades. Ao mesmo tempo vejo a razão desconstruir castelos de areia em relação à fé. E isso é sensacional”, diz.
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