Rio é o estado do Brasil com mais bruxos: são 40 mil adeptos da religião wicca
Tradição é baseada em rituais pagãos antigos e celebra os ciclos da vida
Quem olha para Jussara Gabriel, de 62 anos, reconhece de cara que ela é uma bruxa. A fisioterapeuta traz na testa um pentagrama tatuado em vermelho, para não deixar dúvidas de que tem conexão com o mundo místico. Suma-sacerdotisa wiccana, o mais alto grau da religião wicca, Jussara abriu há 9 anos um coven (grupo que reúne de sete a 13 wiccanos) na Zona Oeste, onde celebra rituais com frutas, flores, mel, fogo e música, marcando as passagens das quatro estações do ano.
— Sou bruxa e não escondo de ninguém. Se algum dia sofri preconceito, nem percebi — diz Jussara, que tem na vinhança uma igreja pentecostal e, vira e mexe, joga tarô e lê as mensagens das runas para pacientes.
“Sou bruxa e não escondo de ninguém”
Antes de ser adepta da wicca, religião baseada em rituais pagãos antigos que celebra os ciclos da vida, ela já foi da umbanda. Descobriu-se bruxa há 20 anos. Quando não está na clínica de fisioterapia, adota um estilo típico de bruxas: cultiva longas madeixas (uma “blindagem natural para os chacras das costas”) e prefere usar roupas pretas (cor que lhe garante “proteção contra energias negativas”). Ela diz que há muito folclore envolvido.
— Há explicação para tudo. Em nossos rituais, usamos a dança e o tambor para fazer conexão com o divino. É uma religião pagã, que começou a ser conhecida na década de 1950, mas que já existe há mais de 20 mil anos. A vassoura de ervas, por exemplo, é usada para limpar energias negativas do terreno. Na era medieval, as bruxas passavam um unguento alucinógeno na vassoura e se sentavam nela para voar até os sabás (festivais); elas não voavam fisicamente, mas através do alucinógeno, algo astral — conta ela, que faz músicas com letras louvando deuses celtas e já estudou mitologia e astrologia.
Segundo estimativas da União Wicca do Brasil (UWB), o Rio é o estado com maior número de bruxos do país: são cerca de 40 mil praticantes de bruxaria, das mais variadas vertentes (tradicional inglesa, celtíbera, familiar...), a maioria da Baixada Fluminense e da Zona Oeste da capital. Em segundo lugar, vem São Paulo, com 20 mil bruxos. Ao todo, a UWB estima que cerca de 300 mil pessoas pratiquem bruxaria no país.
“Nossa religião, a wicca, não tenta converter ninguém. Não é uma religião de massa, mas de sacerdotes, e nem todo mundo está preparado para isso”
— De maneira geral, praticantes de religiões pagãs não ficam por aí divulgando sua crença. Não que a gente precise guardar segredos, não temos nada para esconder. Mas nossa religião, a wicca, não tenta converter ninguém. Não é uma religião de massa, mas de sacerdotes, e nem todo mundo está preparado para isso — diz Og Sperle, presidente da UWB, entidade que recomenda discrição aos bruxos.
Divulgação para pôr fim ao preconceito
Um dos trabalhos da UWB, explica Og Sperle, é divulgar a religião para tentar acabar com o preconceito. Nos últimos anos, a entidade tem participado de debates em escolas, promovidos por entidades de defesa dos direitos humanos e de promoção da liberdade religiosa. Não são poucas as vezes em que o público faz perguntas que associam bruxaria ao culto de forças do mal.
— Querem saber se adoramos o diabo, se fazemos sacrifícios. Respondo as perguntas e tiro dúvidas — diz.
A estudante de enfermagem Kathleen Karolina, de 23 anos, moradora da Baixada, só pôde praticar sua bruxaria livremente ao se casar.
— Entrei para a wicca aos 18 anos. Minha família é evangélica e nunca aceitou. Eu tinha que trancar meu altar no armário. Há muito preconceito. Ser bruxa é respeitar a natureza, nós não sacrificamos animais e crianças — diz.
Áudio espalhou fake news
No mês passado, a religião wicca ganhou evidência após um vídeo feito em São João de Meriti, na Baixada, viralizar nas redes sociais. Nele, integrantes do grupo Tradição Athena Pronaia, usando capas pretas, pronunciam a frase “Salve, Hécate!”, em grego. Na vertente europeia, Hécate é a deusa dos caminhos e das encruzilhadas.
Em áudio que circulou por WhatsApp, uma mulher não identificada acusa seguidores da wicca de sequestrar e sacrificar crianças para rituais satânicos em Meriti. Após o episódio, duas bruxas foram expulsas de suas casas por traficantes.
Há 13 anos, Alana Morgana, de 66 anos, celebra os deuses gregos pelas ruas de Meriti, onde além de um templo wicca, tem uma escola de magia com 20 alunos. Às divindades seguidas pelos bruxos modernos são oferecidos queijo, leite, frutas e flores, já que a religião cultua as forças da natureza.
Em agosto, foi a primeira vez que Alana e seus seguidores foram filmados durante o ritual e caíram nas redes sociais como supostos culpados por sequestros e sacrifícios de crianças, o que provocou histeria no município.
— O medo não é por mim, mas por meus pupilos. Dou a cara para bater, mas eles nunca passaram por isso antes — diz ela.
Alana foi à Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática denunciar a divulgação dos boatos nas redes, acompanhada por representante da Secretaria de Direitos Humanos do estado. Para identificar culpados pela difamação, o delegado Pablo Sartori pedirá às empresas de telefonia e internet que quebrem o sigilo das comunicações. Os envolvidos serão indiciados por intolerância religiosa. O estado do Rio registrou aumento de 60% nos casos de intolerância religiosa no primeiro semestre de 2018, em relação ao ano anterior.
* Estagiária sob supervisão de Leila Youssef
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