Como os xamãs vivem na Rússia
12/08/2014
No final de julho, foi realizado na Sibéria o festival O Chamado dos 13 Xamãs, que reuniu praticantes de esoterismo de todo o mundo. Entre os convidados estavam líderes tribais do México, Groenlândia, Mongólia e Coréia do Sul. O moscovita Mark Gusliakov foi um dos treze xamãs que participaram do festival. Ele é curandeiro e organizador da comunidade sem fins lucrativos Casa do Xamã e conversou com a Gazeta Russa sobre o que é o xamanismo na Rússia e qual é o papel dos xamãs no mundo atual. Confira o depoimento da correspondente Marina Obrazkova.
Estamos sentados com ele no que eu gostaria de chamar de seu escritório, mas essa não seria a palavra apropriada para designar este lugar. O cômodo está decorado com pinturas e objetos usados em rituais: na parede, em frente à escrivaninha, estão pendurados ícones ortodoxos; no canto, há um traje de xamã confeccionado de pele de lobo e o principal atributo de um xamã - um pandeiro. O personagem principal está usando roupas ‘normais’: uma camiseta e uma bermuda. Apesar do fato de não estarmos na estepe ou na taiga, e sim em Sokolniki, uma subprefeitura de Moscou, e que em vez de um canto gutural ouve-se o ruído do ventilador, a sensação da presença real de um mundo antigo e de uma atmosfera milagrosa não me abandona.
Quando entrei, Gusliakov examinou cuidadosamente o espaço à minha volta e disse com seriedade que muitas pessoas vieram junto comigo. Durante a conversa, ele explicou que viu muitos dos meus antepassados que, segundo ele, sempre se encontram ao lado da pessoa e que só poderiam ser vistos se tivessem sido videntes, curandeiros e mestres espirituais. Depois de ouvir essas palavras, o mais importante era conseguir conservar o gravador nas mãos e manter o fio da conversa. Por um lado, como uma jornalista normal, eu comecei a considerar estes comentários como um truque psicológico, por outro, as minhas avós e bisavós realmente eram curandeiras e os antepassados mais antigos pintavam ícones. A questão permaneceu sem resposta.
"Tenho recebido mendigos, ricos, pobres, desafortunados, alcoólatras. A minha tarefa é ajudar as pessoas e estou fazendo tudo o que posso", disse Gusliakov. Ao ouvir essas palavras começo a experimentar uma sensação ainda maior de desconforto.
Gusliakov não gosta de se encontrar com jornalistas e não possui um site próprio na internet. Ele nasceu no Cazaquistão e recebeu a sua primeira iniciação como xamã aos cinco anos de idade. Contou pouco sobre si mesmo, disse apenas que não escolheu o seu caminho, mas nasceu com habilidades que não podem ser desligadas ou removidas. "As pessoas sempre são atraídas para alguma coisa, elaborar projetos ou desenhar, compor música. Pela cor da pele, formato e aspecto dos dedos dos pés posso descobrir que tipo de doenças crônicas as pessoas têm, onde viveram os seus antepassados e assim por diante, e nem precisei aprender a fazer isso. Todos os meus antepassados se ocupavam de curandeirismo e rituais, até o meu sobrenome - Gusliak - significa feiticeiro”, contou. “Uma vez ao dia o meu corpo se contrai em convulsões por 15 a 20 minutos, sempre no mesmo horário. Nesse estado, a realidade se transforma e são necessárias forças extraordinárias para retornar. Por enquanto, estou longe de entender tudo o que acontece”, continuou.
O chamado dos 13
O xamã disse que as próprias pessoas, quando realmente precisam de ajuda, conseguem encontrá-lo. Que tipo de ajuda pode vir de um xamã? De acordo com ele, existem muitas pessoas com problemas ligados à sua linhagem que não podem ser curados por meio dos recursos da medicina, mas que prejudicam seriamente a vida. No festival Chamado dos Xamãs formavam-se filas de moradores locais que pediam ajuda aos esotéricos que tinham vindo para o encontro. Metade dessas pessoas possuía problemas espirituais que haviam provocado mortes na família. "As pessoas não tinham nada para dar em troca do tratamento, mas era impossível recusar ajuda a elas. Por gratidão, elas deixavam o que tinham: comida, 50 rublos (R$ 3,15), alguns objetos. No dia seguinte, elas telefonavam para agradecer, porque sentiam que a sua vida estava mudando”, contou Iúlia, companheira de Gusliakov.
O festival de xamãs foi um marco para as pessoas envolvidas em práticas espirituais. Gusliakov foi um dos 13 eleitos do evento organizado pelo xamã de Tuvan, Nikolai Oorjak. "Não sabíamos que o nosso encontro iria ocorrer em um período em que vários conflitos armados surgiram simultaneamente no mundo”, contou. “A missão do evento era perguntar ao grande espírito o que vai acontecer com a humanidade e ao planeta e unir os xamãs de todo o mundo. Atualmente muitas pessoas estão envolvidas em práticas espirituais, existe uma rivalidade, uns não aceitam as tradições dos outros", acredita ele.
Ele contou que durante o festival era possível se deparar com verdadeiros milagres. "Os participantes do evento tiveram que se acomodar nas montanhas, e isso com uma temperatura de 40, 50 graus, um calor excessivo até mesmo para os moradores locais. Em meio a tais circunstâncias, os xamãs subiram para um retiro de três dias, sendo que muitos deles não estavam levando nem mesmo água”, recordou. “Então um xamã mongol realizou um ritual. Ele trouxe recipientes para água, dispôs da maneira adequada e disse: ‘Acho que isso será suficiente para todos’. Começou a tocar o pandeiro e cantar canções rituais, e depois de três minutos caiu uma chuva muito forte, que molhou todas as roupas e encheu os recipientes com água. Essa foi uma manifestação de conhecimento de xamanismo realmente muito antiga, na forma como ele é preservado e transmitido.”
Iúlia disse que as coisas são difíceis para os xamãs na Rússia e eles precisam de ajuda. "Ninguém apoia essas pessoas. Em outros países muitos xamãs são protegidos pelo Estado e até mesmo pela Unesco, na qualidade de patrimônio cultural da humanidade. Na Rússia, uma dessas pessoas é Mongush Kenin-Lopsan, presidente dos xamãs de Tuvan”, explicou ela. É preciso destinar recursos aos xamãs para que eles possam viajar para os locais onde existe força, porque como eles se ocupam da cura, acabam gastando a sua força para purificar a sociedade, fazê-la melhor. Geralmente, os verdadeiros xamãs não são pessoas ricas e não podem se dar ao luxo de viajar.
Gusliakov disse que em Moscou vive um número considerável de pessoas que realmente podem tratar doentes e trabalhar com energias. Na maioria das vezes são pessoas que migraram da Sibéria. Basicamente, todas elas tentam comprar um terreno na periferia e não ficar na cidade. Ele também observou que a maioria dos xamãs que dão entrevistas, publicam textos em jornais e mantêm blogs na verdade não são xamãs e só querem lucrar em cima da crença humana em milagres. Os verdadeiros conhecimentos esotéricos que os xamãs possuem são transmitidos de professor para aluno e não não escritos livros nem produzidos filmes sobre eles.
Quem é o xamã?
Gusliakov está convencido de que o xamanismo está embutido no patrimônio genético do ser humano. "Existem certas coisas que você pode sentir aqui mesmo, sem trajes e sem fogo ritual, sem canto e rezas - está dentro do corpo. Antigamente, os xamãs eram identificados apenas por determinadas características físicas, como cor dos olhos e padrão das veias, mas essas tradições se perderam. No entanto, apesar disso, qualquer pessoa é capaz de sentir se tem diante de si um xamã verdadeiro ou não”, ele explicou.
Para ele, pode se chamar de xamanismo a todas as atividades que uma pessoa realiza de acordo com o seu "talento genuíno". "O Xamanismo é um dom artístico do Universo. Não cabe a nós decidirmos sob que forma esse dom irá se manifestar. O dom do xamã está na expansão dos limites da percepção, no aumento da compreensão da essência da vida. O Xamã acumula conhecimento sobre si mesmo e sobre o Universo. Ele é livre e a sua vida é guiada pelos sentimentos e não por ações e coisas."
O esotérico está convicto de que é inútil escrever livros sobre rituais xamanísticos e ninguém que desenvolve a prática espiritual fará isso. "O Xamanismo não consiste em escrever livros, e sim em desenvolver os sentimentos. Todas as pessoas têm sete sentidos, pois além dos cinco habituais há ainda a clarividência e a intuição. O curioso é que agora o ser humano está reprimindo esses dois últimos sentidos. Os nossos antepassados faziam uso deles em vez da internet e do telefone. Eles sentiam e entendiam uns aos outros à distância", concluiu ele.
Mais tarde, ao transcrever as minhas gravações e ver as palavras na tela do computador, percebi o que o xamã quis dizer. Ao recontar as suas palavras eu não consigo transmitir aquilo que senti estando na pequena sala com paredes pintadas. E não tenho a menor vontade de verificar se diante de mim tenho um xamã genuíno ou não. Nós precisamos de pessoas desse tipo, que pensam com clareza, lógica e racionalidade para que possamos enxergar um outro mundo, um mundo paralelo e muito incomum.
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